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para escu(l)tar atento o mundo, 2020 até 2024

Comecei a moldar orelhas de argila depois de um sonho, em 2020. Espalhei-as pelo corpo e chamei esse gesto de "escutar por todos os cantos".

Em 2021, durante uma residência em São Sebastião, SP, espalhei-as aos pés de uma árvore. Nomeei esse trabalho como "Para escu(L)tar com atento o mundo – a terra – deitar as orelhas sobre o chão, ser alcançada pelo canto do mundo, corpo gerador de vida". Minha intenção era observar a passagem do tempo e dos acontecimentos sobre a matéria-argila crua, sem queima.

Chovia bastante naquele período, o que favoreceu o desejo de registrar o processo. Ao longo dos dias, as orelhas foram se dissolvendo, fundindo-se à terra aos pés da árvore.

Ensaiei levá-las até a areia da praia. Em uma primeira e única tentativa, levei uma das orelhas que estivera na terra. O mar levou. Naquela noite, sonhei com a orelha sendo devolvida aos pés da árvore.

Em 2023, retornei à escuta das orelhas, mas foi só em 2024 que uma nova série se gestou. No quarto de trabalho, espalhei sobre o chão terra do quintal, formando um oval de terra com um espelho enterrado no centro. Era como um ensaio para enterrar espelhos na terra, lembrar que não estamos separados do corpo do mundo.
(Algo assim. Algo que ainda estou desdobrando.)
Neste espaço, com o espelho ora enterrado, ora aparente em forma circular, pendurei sobre o rosto orelhas de argila crua, suspensas por fios vermelhos. Era o corpo em performance, movendo-se em relação com aquele oval de terra e o espelho.

Desse acontecimento, nasceu uma série de fotografias e um vídeo, que nomeei:
"a terra que também é o corpo que deita sobre ela – escu(L)ta"
e
"a terra que também é o corpo que deita sobre ela – da terra".

Durante esse mesmo período, participei do projeto de concessão de ateliê do Instituto Cultural Remanso, em Porto Alegre (RS), ao longo de 2024. Foi lá que, a convite de Guilherme Mautone, levei novamente as orelhas para o quintal. Junto a Claiton Martins, montamos na parede dos fundos uma série com 37 orelhas de argila.

A intenção, mais uma vez, era entregar a matéria ao tempo.
As orelhas atravessaram todo o acontecimento da enchente de maio. A chuva foi o principal atuante no trabalho. Algumas orelhas se desprendiam da parede, caindo sobre a terra, onde iam se desfazendo aos poucos. Ao final, restaram apenas as manchas da argila sobre a parede branca, rastros da ação, do acontecimento.

Não conseguimos registrar todos os momentos, sobretudo pelo caos que impossibilitou o acompanhamento constante.

Penso na palavra escutar entrelaçada à palavra esculpir. Há qualquer coisa de escultor na escuta, um gesto que se aproxima do silêncio e da forma. Penso também em Andrei Tarkóvski, cineasta soviético, e seu livro Esculpir o Tempo. Há algo de escultor também na criação de um filme, de imagens, de uma presença na vida. Uma forma de se relacionar com as coisas, com o outro, com a natureza, com o mundo.

O sonho de 2020 permanece em mim:
o chão de uma sala de aula (de terra), repleto de orelhas humanas, como se plantadas ali.
No orifício das orelhas, brotavam espinhos circulares.
Esse recorte fincou em mim.

Escolher a argila como principal matéria não difere do que me moveu em 2019, nos trabalhos Esvaziamentos e de coração suspenso. A relação que se cria no gesto com essa matéria é, para mim, a mesma relação que estabelecemos com a vida, com os acontecimentos, com o outro, com a natureza, com o mundo.

Tudo isso exige atenção, cuidado, e sobretudo, estado de presença.
Um estado que exige exercício constante.

A escolha da não queima da argila é principalmente, pela fragilidade da matéria.
Ela permanece aberta. Recebendo o tempo, de maneira um tanto mais nítida através dos acontecimentos.

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©Virgínia Di Lauro

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