top of page

Create Your First Project

Start adding your projects to your portfolio. Click on "Manage Projects" to get started

Quebramento de moldura, 2016

A série surgiu da ruminação sobre o dizer: “o cabelo é a moldura do rosto”.
Essa frase me atravessou. E, com ela, a imagem da moldura como suporte — algo que adorna, protege ou valoriza. Moldura de quadro, de obra, de espelho. A depender do material ou do formato, a moldura pode elevar aquilo que envolve, conferindo-lhe um acabamento, um status, um valor. Estético, simbólico, social.

Meu cabelo — moldura — não é o cabelo-padrão, aquele mais aceitável.
Apesar de, nos últimos anos, a indústria de cosméticos e suas campanhas publicitárias terem dado certo protagonismo aos cabelos “fora do padrão”, é evidente o sequestro do capitalismo, que transforma tudo em produto: consumo possível e impossível. Nas prateleiras, há de tudo. As marcas pipocam. O cardápio é extenso.

Estava em transição para meu cabelo natural quando, pela primeira vez, raspei a cabeça.
Havia um desejo íntimo de compreender — em mim — o que aconteceria ao retirar essa “moldura”.
Aproveitei o gesto para registrar. E, na sincronia dos dias, acabei indo parar numa rua onde encontrei pequenos pedaços de molduras abandonadas. Recolhi. Acolhi o abandono.

E ali, percebi: já não havia a moldura.
Havia o rosto.
Um rosto revelado em sua superfície nua. Um rosto que agora era a moldura de si.

Registrei esse rosto com fios bem apertados, tensionando, cortando, quebrando essa outra “moldura”. O rosto ia se transformando — qualquer coisa disforme, saltada, como se quisesse ir cada vez mais para fora de si. Também experimentei aquelas molduras quebradas e abandonadas sobre o rosto. O embate entre o enquadrar e o transbordar.

É uma série composta por registros despretensiosos, feita na brincadeira da palavra — no desejo de questionar suas camadas, entre o dizer e o fazer.
Questionar a função do objeto.
O que torna um objeto mais valorizado que outro? Um rosto mais aceitável que outro?
Qual o “papel” da moldura nessa valorização?
O que é considerado melhor ou pior? Mais bonito ou mais feio?

bell hooks, ao refletir sobre estética, corpo e identidade negra, nos fala da importância de romper com os padrões coloniais de beleza e abrir espaço para a autoimagem como um ato de resistência e afirmação. O cabelo, nesse contexto, não é só moldura — é campo de luta simbólica. É linguagem. É território. Quando nos apropriamos dele em sua textura, forma, política e ancestralidade, estamos criando uma nova estética do afeto e da autonomia.

Judith Butler, por sua vez, nos lembra que o corpo e o rosto não são dados fixos, mas constituídos performativamente — pela repetição de normas, gestos e olhares que regulam quem pode ser visto, reconhecido, valorizado. Raspar o cabelo, tensionar o rosto com fios, brincar com molduras quebradas é, nesse gesto, desestabilizar essas normas. É tornar visível aquilo que escapa, aquilo que transborda.

Essa série, portanto, é também um modo de devolver a pergunta:
Quem moldura quem?
E quem decide o valor do que é moldurado?

© Copyright

©Virgínia Di Lauro

bottom of page